terça-feira, 30 de setembro de 2014

Das culpas...

As rodas comiam o asfalto com fome e com pressa. A noite favorecia aos devaneios, o motorista ao meu lado, tão conhecido por mim, fazia a troca de marchas sem piscar, sem pestanejar. Engraçado, em raras situações eu sentia que sua mente esquizofrênica dava-lhe paz, dirigindo era uma delas.
Talvez pela configuração dos signos, a minha trouxe-me essa empatia, essa intuição que me assola, que me castiga, que me tortura. Poucas são as pessoas que fito, que observo e não consigo vislumbrar suas essências, diria que são quase exceções.

Existem homens com desejos tantos, com fetiches tantos, com gestos tantos e inimagináveis, a literatura, a internete estão recheadas deles. Mas ainda não li, não vi, alguém que fosse fissurado no toque puro e simples de um nariz. Sim, era esse o maior gesto e a maior prova de amor do homem ao meu lado. Entre um quilômetro e outro estendia sua mão ao meu rosto e seus olhos tocavam os meus. E me diziam do prazer de me sentir de me perceber ao seu lado através de um toque em meu nariz. Havia dias que me ressentia, doia-me o bendito nariz. Por quantos anos isso? Muito e muitos, brincava e sorria me dizendo que só eu lhe proporcionava esse prazer, os outros narizes não eram o meu. Quando o evitava, quando evitava seu toque, era como tirar-lhe o sentido das  mãos, cortava o cordão umbilical que nos unia.

E ali estávamos, os dois embalados por Beatles, sempre Beatles. Ele, conhecia todas as músicas, tocava-as todas. E hoje, qualquer menção de Lennon, Paul, Ringo, George me levam ao passado. Tantas coisas me levam ao passado. Como se meu futuro estivesse enterrado nele.

A decisão do retorno não tinha sido fácil. Foi dolorosa, foi traumática, foi cirúrgica. E enquanto o carro ganhava terreno eu me perdia. O destino seria uma nova vida, uma nova chance. Não, não era nada disso. Era minha expiação, necessitava expiar minha culpa. Expiar meus erros. Arrancar dentro de mim o câncer a me roer e corroer, o câncer da culpa.

As estrelas ao longe piscavam e mostravam-se maiores do que em noites normais. A lua nos seguia, nos observava. Logo chegaríamos ao nosso destino.

Amanhecia. 

A cidade que me esperava já era minha velha conhecida e fervilhava. Cidade turística, cidade de tantas etnias. A cidade sorriu-me. Ele continuava a dirigir e dirigir sem se cansar, sem muito falar. O que era raro. Entre nós sempre foi o mais falante. Reclamava do meu jeito calado, sempre em busca do poder sobre mim, se pudesse entraria em minha mente e a vigiaria noite e dia, dia e noite.

A  casa. Diferente da que tivemos, diferente da que vivemos por vários e vários anos, testemunha de todos os nossos conflitos, de todas as nossas dores. Essa, era bonita, chique. Melhor e já mostrava os traços da personalidade do seu novo dono. Assim que a vi, percebi que ele não havia mudado, nada havia mudado.

Ao entrarmos sala a dentro, as chaves do carro foram jogadas em cima da mesa. E ao me tocar novamente ao estender sua mão para meu nariz, novamente seus olhos tocaram os meus e vi no fundo deles, que nada mudaria. Eu expiaria minha culpa, meus pecados estavam a mercê de sua esquizofrênia.

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